Prólogo

Chega o crepúsculo.

Os comerciantes recolhem suas mercadorias; os religiosos começam suas orações pelas ruas, acendendo lamparinas por toda a cidadela para espantar a escuridão da noite; crianças que corriam e brincavam pela praça central da cidadela de Aimaran agora correm para suas casas, respondendo ao chamado dos pais. Dentro de alguns minutos, a guarda da cidadela será substituída por homens descansados, apenas por rotina, pois há muito tempo a capital do império vallaryano vive em paz, apesar da guerra que acontece há anos em suas fronteiras a leste. Um bando de pássaros voa e se destaca no belo cenário, formado pelos prédios baixos da cidade, pelo grande rio valar e pelas nuvens alaranjadas no céu.

O tempo é agradável.

É o trigésimo terceiro dia de primavera. A lama e todos os resquícios do inverno nas ruas já foram limpos e as estradas reparadas. Mais uma temporada de viagens políticas está para começar, mas apesar de todo o cenário perfeito gravado na janela de seu escritório pessoal, o rei Feodan sente um enorme peso em seu coração.

Ou melhor, eu seu estômago.

– Senhor, sua carruagem está pronta.

Saindo de seu pequeno devaneio, Feodan não precisa olhar em direção a porta para saber que lá está a imagem de um homem careca e alto vestido com uma roupa de couro preto. A roupa, muito justa, destacava um corpo magro e desprovido de músculos, porém firme, e com uma postura imponente.

– Senhor? – disse o homem novamente.

– Sim, eu ouvi – disse o rei. Com a aparência desgastada, respirou fundo pelo nariz, e soltou o ar pela boca, para só então virar-se em direção ao outro com um agradecimento.

– Obrigado, Royds.

– Está sentindo-se bem, senhor?

– Só estou velho e cansado. – Forçando um sorriso, Feodan passa pela porta do escritório e tenta assumir a sua postura natural enquanto anda em direção aos estábulos. Usava uma camisa simples de camponês com as amarras da gola abertas, expondo um pouco de seu peito repleto de pêlos.

Para cobrir o silêncio incômodo, perguntou ao serviçal:

– Alguma novidade, Royds? Quando começam as viagens desse ano?

O homem de preto que andava atrás do rei acelerou o seu passo, tomando uma posição ao lado de Feodan para responder sua pergunta.

– Na próxima quinzena, senhor. Viajará para Termon. O senhor, junto a sua família, foi convidado para o aniversário do filho de vossa senhoria, o grão-duque Bastin Term. O jovem milorde Waren Term estará completando uma década e meia. Já dei ordem para que fosse forjada uma espada decorativa para presentear o jovem milorde. Deve estar pronta nos próximos dias.

“Hoje à tarde chegou uma mensagem de vossa senhoria, o grão-duque de Vallin, Loren Val, propondo à vossa majestade encontrá-lo em Ponte Bela, para que sigam viagem juntos. Devido às más condições da estrada que leva à Vallin, seu castelo não poderá estar à disposição de vossa majestade. Ele propõe na mensagem que se encontrem em Ponte Bela e passem a noite lá para que discutam assuntos particulares de menor importância, não especificados na mensagem. De lá, sugere seguir viagem no dia seguinte direto até Cruz dos Rios. Vossa senhoria, o grão-duque Loren Val, informou que estaria acompanhado apenas dos filhos e de alguns poucos guardas de confiança”.

– Cada capital é responsável pelo reparo das suas estradas. Normalmente vinte dias é o suficiente para limpar toda aquela lama e reparar os piores danos na Rio de Pedra. Por acaso houve algum problema com o dinheiro enviado à Vallin para tais reparos? Não acredito que ele estará vindo ao meu encontro para ter uma conversa sobre “assuntos de menor importância”.

– Os relatórios estão todos em dia, e não há nenhum atraso registrado. Se me permite a suposição, imagino que vossa senhoria, o grão-duque Loren Val, tenha algum assunto importante para tratar com vossa majestade. Um assunto que não pode ser deixado para segundo momento, visto que estará vindo em pessoa ao seu encontro.

Apesar de não expressar, o comentário do serviçal pegou Feodan de surpresa. Normalmente não deixava que coisas óbvias passassem em branco, e odiava que outros apontassem algo que não havia percebido. Simplesmente não estava prestando tanto a atenção em Royds. Estava ansioso demais com a tarefa que realizaria em alguns momentos.

Não tendo mais nada a dizer, Royds diminuiu a velocidade para ficar novamente um passo atrás do rei.

Percorreram o resto do caminho até os estábulos em silêncio.

Apesar do esforço para manter sua postura normal Feodan, não conseguiu esconder as pequenas expressões que denunciavam dor. Sentia os olhos questionadores de Royds em suas costas, mas não se atrevia a mostrar ao homem mais do que aquilo. Seu segredo era para poucos, e assim deveria permanecer.

Ao chegar aos estábulos, Royds foi dispensado por Feodan. A carruagem que o aguardava era simples. Uma caixa de madeira com aberturas à frente e atrás, com alguns caixotes, e barris, além de alguns sacos com grãos. Nada nesta carruagem indicava a presença do rei. Passaria facilmente por uma carruagem de mercador saindo da cidadela no fim do dia.

Dentro da carruagem, todo encolhido e à espera do rei, estava um homem alto vestindo uma túnica simples de lã marrom, com o capuz jogado para trás. Seu rosto, com uma expressão pétrea e séria, indicava apenas preocupação. Feodan, no entanto, sentiu-se mais tranquilo ao ver aquele rosto familiar. Cabelos lisos e curtos, queimados pelo sol, e a barba rente, perfeitamente desenhada, ambos louros como ouro, emolduravam aquele rosto sério. Sem dúvida alguma, aquele rosto sério e distraído, que fitava as próprias mãos com os dedos entrelaçados, era o mais fiel em que Feodan conseguia pensar. Mais fiel até mesmo do que o de sua própria esposa ou filha.

– Boa noite, Ludon – disse o rei, com indiferença fingida.

Como se retomasse a consciência, o homem respondeu encarando o rei.

– Boa noite, majestade – com sua voz ressoando como um trovão em meio às mercadorias, levantou-se para ajudar o rei a subir.

– Quem é o cocheiro? – perguntou enquanto empurra um caixote para sentar-se.

– Um ajudante de cozinha surdo e mudo. Lubran quem o indicou – respondeu, entregando ao rei uma túnica que, com exceção ao tamanho, era idêntica à que vestia.

– O garoto sabe como conduzir os cavalos?

– Eu mesmo já o vi carregando uma coisa ou outra por aí. Não se preocupe, ele vai dar conta. É surdo, mas não é burro. – Quando terminou de falar, esticou o braço tocando o cocheiro, e fez sinal para que andasse.

– Quem me dera fosse tão burro quanto surdo.

– O que o incomoda, irmão? Porque pediu para que eu organizasse essa expedição para uma região tão erma, nos limites rurais da cidade?

Por um tempo ficou em silêncio organizando as ideias. Não havia problema algum em conversar abertamente com Ludon. Afinal de contas nós somos irmãos, de uma forma ou de outra, pensou.

A carruagem parou por um momento e ouviu-se um ruído de madeira e correntes. O portão da cidadela estava sendo aberto para dar passagem ao cocheiro. Durante algum tempo balançando dentro da carruagem simples, Feodan decidiu simplesmente falar a verdade.

– Ouça-me com atenção, Ludon. Eu estou morrendo. – Feodan não acreditava que aquilo fosse possível, mas a expressão no rosto amigo ficou ainda mais séria. – Esta não é a primeira vez que eu saio escondido durante a noite. Deve se lembrar de alguns dias de inverno em que não dei as caras. Porém é a primeira vez que vou para fora dos limites urbanos da capital.

– Sim, lembro-me de várias noites que você não apareceu. Só o que diziam era que estava com frio e querendo descansar. Mas porque então, só agora, me conta isso? Porque não antes?

Pode não aumentar o tom de voz, mas eu sei que ele está furioso. Conheço-o muito bem, meu caro, pensou Feodan.

– Achei que confiasse em mim – continuou o amigo, indignado. – Quem mais sabe disso? Há quanto tempo vem escondendo isso? Aliás, o que é que você tem?

– Uma pergunta de cada vez. Não vamos chegar tão rápido ao nosso destino tenho tempo para responder tudo isso. Não lhe contei, pois não imaginava que fosse chegar a esse estado. E também sabia que reagiria dessa sua forma, super protetora.

– Não é questão de ser ou não super protetor, a questão é que…

Antes que pudesse continuar, Feodan o interrompeu

– Eu lhe conheço muito bem e sei que iria forçar Royds a procurar o melhor médico do reino o mais rápido possível. Não me deixaria nem mesmo sair do quarto até que estivesse pulando como um cavalo de Prado Real.

Ludon fez menção de voltar a protestar, mas antes que saísse algum som de sua boca, foi impedido por um gesto firme do rei.

– De qualquer forma, por menos que você confie nele, Lubran sempre foi muito sutil. Buscou por remédios para meu problema e facilitou minhas saídas noturnas. Fiz dessa forma pois não seria nada bom ter um curandeiro dentro de meu quarto. É a última coisa que eu quero. Um rei fraco e doente é um obstáculo fácil de superar, e eu sei de alguns grão-duques que se vêm interessados em assumir meu posto. Praticamente cada família tem um espião em minha corte. Seja por bem ou por mal.

“Sem falar da possibilidade de isso chegar aos ouvidos dos Hurrgals. Isso poderia ser motivo suficiente para eles atacarem o reino, ou espalharem boatos para me prejudicar politicamente. Talvez até algum reino de fora se visse interessado em nos prestar uma visita indesejada, quem sabe o que poderia acontecer?”

“Porque não antes? Queria ter certeza da gravidade dessa doença. Ela veio com o outono e piorou no inverno. Achei que fosse melhorar na primavera, mas estou pior a cada dia. Posso sentir isso muito bem. Eu sinto dores, cada vez mais fortes em meu estômago. É como se fosse um incêndio constante que só passa depois que eu bebo bastante água. Eu fico enjoado, vomito, não tenho fome, e quando tenho não consigo comer. A única coisa que consigo comer é aquela pasta de aveia que preparam para as pessoas mais velhas sem dente, mas só um pouco para não vomitar. Vinho? Impossível. E isso é porque eu ainda não falei dos meus episódios na latrina…”

Feodan parou de falar quando foi surpreendido por um soco no braço esquerdo.

– E porque você não me falou nada? – Ludon sussurrava com os dentes trincados.

– Isso doeu, você está com Beludge no corpo? Perdeu o juízo? Você acabou de socar o rei!

– Não, eu acabei de socar meu irmão mais velho e imprudente, que por acaso acontece de ser o rei de Vallarys. Doente e escondendo essas coisas de mim. Você preferiu recorrer a Lubran! Você talvez seja a única pessoa de toda a sua própria corte que confia nele.

– Lubran tem seus defeitos, mas ele é extremamente confiável à familia de Aimar, você sabe disso. Sem falar que é praticamente impossível esconder alguma coisa dele. É capaz de ele estar ouvindo essa conversa agora mesmo. E eu confio em você acima de qualquer um na minha corte, você também sabe disso. As únicas pessoas, além de você, que sabem da minha situação são as três pessoas que estamos indo visitar, mas eles não fazem ideia de quem sou eu. Devem estar imaginando que é apenas um nobre qualquer. Nós os conheceremos em breve. Além deles, e de Lubran, apenas Talina, e ela foi muito mais compreensiva do que você quando recebeu a notícia. Royds também deve suspeitar de alguma coisa, afinal de contas ele é minha sombra. Admiro isso no sujeito. É um bom administrador. Mas ele não é motivo de preocupação. O homem tem um ar ardiloso, mas acredito que saiba o seu lugar.

Feodan pôde sentir a raiva do amigo diminuindo enquanto ele digeria as informações e deixava a razão tomar o lugar de suas emoções. O fim da tarde não era de todo silencioso. Várias pessoas andavam de um lado para o outro nas ruas, cuidando de suas vidas, voltando para suas casas.

– Então para evitar os ratos do castelo, você resolveu confiar nos vira-latas de Lubran – disse Ludon quebrando o silêncio com sua voz de trovão. Feodan sorriu.

– O homem é o único fora de nossa família em quem confio, a verdade é essa. Ele serve à nossa família desde a época do meu avô. Ele mataria você se eu ordenasse, sem nem pensar duas vezes.

– Ele tentaria me matar. Poderia terminar decepcionando-o, majestade – Disse Ludon rindo, provocando o um sorriso nos lábios do rei.

– Mas não perca o foco – disse Feodan, voltando a falar sério. – Para falar a verdade não estou preocupado em morrer. Estou preocupado com o que pode vir acontecer com minha família. Leriana é muito nova para assumir o trono. Talina não tem mais pai ou irmãos, e não confio em mais ninguém da família dela. Meus primos são bastardos e jamais seriam aceito pelo alto clero ou pelo conselho de grão-duques. A única coisa próxima à família que poderia me suceder é você.

– Fico feliz por ser levado em tão alta consideração, mas se não fosse pela nossa amizade eu jamais me tornaria o que sou. Para as outras famílias eu não passo de um cãozinho criado que seu pai resolveu adotar para lhe agradar.

– Mas você tem dentes muito afiados e um maxilar forte, meu caro cão. Poder muito maior do que seu pai alguma vez teve. É o capitão da Guarda Real Vallariana, e nem todas as famílias do conselho são estúpidas. Sabem que você tem força e que deve ser respeitado, ainda mais por fazer parte de minha família por um vínculo tão forte.

– Mas de que forma eles poderiam me aceitar? Jamais seria como rei. Como você acabou de falar, o alto clero e o conselho de grão-duques jamais me aceitariam. Eles toleram o que eu sou por causa de você. Se você morrer, não terei mais ligação nenhuma com a família Aimar.

– Claro que tem, Leriana o vê como tio, e Talina só o enxerga como eu o enxergo. Por isso que eu quero que você preste muita atenção no que eu vou falar agora. Sei que vai ser muito difícil lhe convencer, mas… Porque estamos parando?

Sem demoras, Ludon puxou o capuz sobre a cabeça, e se pendurou do lado de fora da carruagem para olhar ao redor. Voltou para dentro esbarrando em caixotes e barris até alcançar o cocheiro e gesticular bastante.

Voltando finalmente ao seu lugar, explicou o que acontecia.

– A carroça de algum mercador está descarregando e outra está vindo nessa direção. Só é esperar ela passar e logo estaremos na cidade baixa. – Começou a massagear a canela, que batera em um caixote – Não deve demorar. Por favor, meu rei, continue.

– Ouça-me com atenção, meu amigo. Se minha situação piorar até a próxima quinzena, tornarei você regente de Leriana, publicamente. Nenhuma outra casa terá como negar isso. Arranjarei um casamento para ela o mais rápido possível durante minhas viagens. Estou pensando em alguma família aliada. Talvez o garoto de Bastin, vamos para o aniversário dele em breve. De qualquer forma, você deve garantir de que nada mudará quando eu me for. Você me conhece melhor do que qualquer um, por isso aja como eu, aja como um rei, enquanto estiver no poder. E ensine tudo o que aprendeu comigo para que Leriana se torne uma boa governante. É isso o que eu peço. Quem sabe se eu duro até lá, mas isso tem que ser feito o mais rápido possível, antes que haja sinais mais claros de minha doença.

Tudo isso foi falado muito rápido e num tom de voz muito baixo que se misturava com o ruído de tabernas e hospedarias da cidade baixa que começavam a ficar movimentadas. Feodan pôs-se a observar o amigo, que era quatro anos mais novo que ele, mas parecia pelo menos dez. A vida de soldado fez muito bem a Ludon.

Enquanto isso, Ludon franzia o cenho e alisava distraidamente o seu queixo. Estava pensando sobre tudo aquilo.

Sempre tinham conversas descontraídas, mas sabia que todas as palavras ditas ali seriam levadas a sério, como um voto de testemunho de Luz.

Começava a ficar ansioso, esperando uma série de argumentos do amigo, mas surpreendeu-se quando Ludon simplesmente assentiu e disse: – Talina já sabe dessa ideia?

– Claro. Não ficou feliz em lhe colocar em apuros, mas entendeu o que deve ser feito. Talina sempre foi muito disciplinada e compreensiva e sabe muito bem que se ela assumisse a regência, os outros grão-duques enlouqueceriam. Todos sabem muito bem que a família dela é do segundo ramo, e que não teria voz sem o apoio de Aimar. Possivelmente encontrariam alguma forma de dizer que Branam está tentando usurpar o lugar de Aimar.

– E a garota?

– Ela é uma garota inteligente. Há de entender. Afinal de contas tem quinze anos, quase dezesseis, já está na hora de se casar.

– Concordo, mas você não levará em consideração o desejo dela? Se ela conhecer outros pretendentes? – disse Ludon enquanto coçava a barba, pensativo.

– Claro que vou levar o desejo dela em consideração, mas ela precisa entender que ela é uma figura política, assim como a mãe. Talina também não queria se casar comigo, mas Branam precisava de poder na época, da mesma forma que nós precisamos de poder agora. Se surgirem pretendentes, vamos analisar cada um deles. Bastin Term é um dos nossos maiores aliados. Nossas famílias são próximas desde a formação de Vallarys, e o filho dele, Waren, além de ser meu favorito para o posto, sempre apresentou interesse em Leriana.

– O filho mais velho de Pádal não seria uma opção?

Feodan fez algumas expressões de dor, dobrou-se sobre si mesmo, e levantou a mão, pedindo para que Ludon aguardasse. Não havia nada que Ludon pudesse fazer, mas permaneceu firme até que o rei se recuperar. Quando a dor parecia ter ido embora, Feodan respirou fundo, e soltou o ar pela boca.

– O filho de Vallor? – disse recuperando a compostura. – Não confio em Pádal. O patriotismo dele também não é bem visto pelo Alto Clero, e nós precisaremos do apoio deles para que você seja aceito como regente. Term por outro lado é o principal investidor na Igreja da Luz.

Ludon assentiu, mas permaneceu calado.

Passado de algum tempo, sem que ninguém falasse nada, a voz de trovão voltou a tomar conta da carruagem.

– Lubran garante que este homem que estamos indo visitar tem uma cura para isso? Quem estamos indo visitar, para ser mais exato?

– Lubran não deu garantias, disse apenas que esta é uma solução improvável para uma doença improvável. A pessoa que estamos indo visitar é um fazendeiro, um camponês. Lubran não entrou em detalhes, mas disse que esse homem possui recursos que vão além do comum.

– Lubran usa muito pouco as palavras – disse Ludon, claramente irritado.

Sabia que Ludon, de fato, nunca gostara do espião real, que era uma figura muito misteriosa. Ninguém sabe aonde são seus aposentos, ou qual a sua idade verdadeira. Ele deve ser velho, ele servia ao meu avô, pensou Feodan.

Sempre que Lubran aparecia para o rei, ele estava usando uma máscara negra, e não havia nada que denunciasse sua aparência real. Os dedos das mãos eram calejados, e a pele era acobreada, mas não era possível definir a idade dele simplesmente olhando-o.

Feodan voltou a prestar atenção em Ludon, e percebeu a expressão de seu rosto variar entre curiosidade, incredulidade, e consternação. Ai vem reclamação, pensou o rei.

E estava certo.

– Eu não sei até que ponto vai a sua confiança em seu espião, mas está confiando a sua vida às mãos de um fazendeiro! Que diz ter recursos! Você mesmo falou de espiões na sua corte e não suspeita do melhor espião que conhece? – A voz de Ludon era naturalmente alta, mas estava falando mais alto ainda. – Você perdeu o juízo, Feodan?

– Fale baixo, idiota! – respondeu o rei ríspido. – Eu sei dos riscos que estou tomando, por que acha que chamei você? Lubran pode ter marcado esse encontro, mas é você quem quero ao meu lado nessa loucura. Preciso achar uma cura e meu espião, que por sinal é muito bom no que faz, indicou esse sujeito. Mas agora fale baixo – disse abaixando o próprio tom de voz – as pessoas nas ruas podem ouvir a sua voz.

Depois de um silêncio breve preenchido pelos guinchos da carruagem, Feodan voltou a falar: – Sim, eu confio em Lubran dessa forma. Não sou nenhum louco e você sabe muito bem disso. Eu preciso fazer isso, Ludon. Eu preciso viver. Minha filha não está pronta para assumir um reino inteiro, e sei que você também não quer esse fardo. Preciso de você ao meu lado, ou ao lado de minha filha. Por favor, compreenda: eu estou desesperado por uma cura.

Ludon assentiu e pôs a mão grande e calejada no ombro de seu amigo, sem dar uma palavra.

Seguiram o resto do caminho em silêncio. Passaram de rua pavimentada para rua de terra. O chacoalhar dentro da pequena carruagem tornou-se insuportável. Além de surdo e mudo este rapaz também é cego? Parece andar em direção aos buracos! Pensou Feodan.

Já era noite quando chegarem ao destino.

Antes de descerem da carruagem, Ludon segurou o braço de Feodan. Encarou-o com ar sério e disse: – Eu serei o regente de sua filha e honrarei o nome de sua família. – Por fim tomou a mão de seu rei e beijou-a – Eu juro. Mas, por favor, nunca mais esconda uma coisa dessas de mim.

– Obrigado, irmão. – disse Feodan pondo fim ao assunto.


A fazenda era simples, porém, mesmo durante a noite era possível sentir algo diferente no ar. À luz da lua minguante, era possível ver pouco do terreno, porém isso fazia com que os outros sentidos parecessem mais aguçados. O cheiro da relva levado pelo vento preenchia as narinas de Feodan. Era como se ali o ar fosse mais puro do que em qualquer outro lugar em que estivera nos últimos anos de sua vida.

O cocheiro parou a carruagem junto a uma mangueira enorme, cujos galhos dançavam embalados com o vento. O perfume da fruta era doce e era possível ver várias delas no chão. Ludon acendeu uma lamparina, e logo se abaixou para pegar duas mangas. Colocou-as em um bolso largo de sua túnica de lã, e passou algumas instruções para o cocheiro.

Feodan percebeu outras três árvores por detrás da casa. Pelo pouco que conseguia ver, suspeitava que seriam mais mangueiras. Estava admirado com a paz que aquela fazenda humilde proporcionava.

Como os badalos de um sino das Casas de Luz, que alertam a cidade para um evento, a dor em seu estômago surgiu para lembra-lo do porque estava ali. Ludon logo se colocou a seu lado, e após uma troca de olhares, os dois assentiram e seguiram para a casa principal da fazenda.

Seguindo uma instrução peculiar de seu espião, bateu na porta da casa com o punho fechado num padrão de três batidas e uma pausa. Fez isso quatro vezes e parou. Conseguia sentir a presença de Ludon logo atrás de si, mas ao mesmo tempo percebeu que o Capitão da Guarda Real estava tranquilo.

Depois de um breve momento de espera, onde já pensava em começar a bater de novo, ouviu o barulho de metal raspando madeira e a porta foi aberta. O homem que a abriu tinha a idade aproximada dos trinta, e possuía cabelo apenas ao redor das têmporas e da nuca, no entanto a característica que mais chamava a atenção em seu rosto era o grande bigode pardo que caia sobre a boca.

Com um gesto, convidou os visitantes a entrar.

– Sejam bem vindos, senhores. Imagino que sejam os nobres enviados pelo mestre Darmian.

Ludon pareceu momentaneamente confuso, mas logo percebeu que Darmian devia ser o nome falso que Lubran usou para se apresentar ao fazendeiro.

– Sim, somos nós – respondeu Feodan. – Na verdade o brutamontes é só para minha segurança, sou eu quem procura sua ajuda.

– Claro, claro – respondeu o homem, fazendo o máximo para evitar olhar em seus rostos. – Sei muito bem que são homens da mais alta classe, mas acredito ter algo que possa lhe ajudar. E garanto que tudo que me for dito será mantido em sigilo, pelo menos assim me fez prometer mestre Darmian. E peço humildemente o mesmo para vossas senhorias.

Após fechar a porta guiou-os aos fundos da casa.

Ludon, seguindo o exemplo de Feodan, tirou o capuz e desceu por uma escada que levava ao subterrâneo. A entrada era escondida por um grosso tapete de palha, que à primeira vista passaria despercebido para qualquer visitante.

– O que exatamente você pode oferecer? – Perguntou Ludon, suspeito.

– Mestre Darmian me falou que um nobre de uma casa importante do reino me procuraria na noite de hoje para tratar de uma doença que o consome por dentro. Uma doença na barriga, não é isso?

– Correto – confirmou Feodan.

– Muito bem, trataremos do assunto lá embaixo.

Terminaram de descer a curta escadaria e chegaram à uma sala escura e abafada.

O lugar possuía vários cheiros diferentes, mas entre os mais notáveis estava o cheiro de madeira fresca. Feodan surpreendeu-se ao ver as grandes raízes de uma árvore – provavelmente de uma das grandes mangueiras por de trás da casa – pendendo do teto, que estava a uma altura alta o suficiente para que Ludon quase raspasse a cabeça. As raízes vinham de todas as direções e Feodan pôde notar que eram elas que impediam que houvesse um desmoronamento na câmara.

Era como se aquela câmara fizesse parte do solo.

Várias velas iluminavam o local. Delas vinha o segundo cheiro mais forte que envolvia o ar. Várias flores, recém colhidas decoravam uma mesa de madeira maciça que ficava ao lado de um forno. Do forno, uma pequena chaminé se projetava teto acima, e por ela subia uma fina fumaça vinda de um um líquido escuro num caldeirão já apagado.

Na câmara havia vários tipos de ervas, cogumelos, carne, sangue e ossos de pequenos animais, tecidos velhos, feno, papel velho – uma raridade na zona rural – e muito mais. Parecia haver um infinito de coisas dentro daquela câmara que parecia lotada com cinco pessoas.

No meio da sala, havia uma cadeira e junto a ela estavam um rapaz jovem e uma moça um pouco mais jovem. Ambos com roupas simples de fazendeiros.

O anfitrião descia atrás de Ludon e se espremeu para passar entre o grande soldado e o rei.

Tomando a frente dos outros dois, disse:

– Bem-vindo ao nosso santuário, milordes. Meu nome é Dal. Estes são meus filhos, Rotan e Tilia.

Os jovens abaixaram a cabeça em uma mesura.

Feodan assentiu e retribuiu o cumprimento.

– Me diga, Dal – disse pondo fim às apresentações e tomando o espaço à frente de Ludon – posso confiar na sua cura?

– Sim, milorde – respondeu o anfitrião – A minha própria filha é prova de que a cura existe. Tilia, venha cá.

A garota dirigiu-se à frente do pai e abaixou a cabeça, demonstrando mais timidez do que qualquer forma de respeito.

– A Tilia tem 13 anos, senhor, e no fim do outono passado contraiu uma doença que eu nunca vi antes. Reclamava o tempo todo de dores de cabeça, e tinha uma febre altíssima. Os seus olhos estavam turvos, e ela sentia dores pelo corpo inteiro. Mas com essa poção, em menos de dois dias ela já estava pulando e correndo no vento gelado do outono.

Feodan olhou para trás e encarou Ludon, que retribuiu com um olhar desconfiado.

– De onde surgiu essa poção? – perguntou Ludon, com ceticismo. – Você que a preparou? Do que ela é feita? Se estiver mentindo, estará em apuros.

Dal, que estava claramente nervoso, passou a língua pelos lábios, e dispensou Tilia com uma batidinha no ombro. Mas antes que ela voltasse para junto de seu irmão, seus olhos cruzaram com os do homem de quase dois metros de altura, e em uma voz infantil e graciosa, ela respondeu.

– Meu pai não está mentindo, senhor. Eu tive dores por todo meu corpo, e durante o dia não conseguia abrir os olhos por conta da claridade. A minha cabeça doía muito, e nem mesmo chorar eu conseguia. Mas depois que eu tomei a poção do pai, eu me recuperei. Nós juramos, senhor.

– Sim, eu acredito em você, pequena – respondeu o rei. Ajoelhou-se e sorrindo para a garota disse: – O meu irmão só está com medo de que eu não me recupere.

A garota retribuiu com um sorriso e voltou para junto de seu irmão.

O rei voltou a ficar de pé, olhou para Ludon com uma expressão de que não sabia o que esperar, e voltou-se novamente para Dal.

– Mestre Dal, o seu segredo estará seguro conosco, tenha certeza disso. Mas as perguntas do meu irmão são pertinentes.

– Claro. Seu segredo está seguro comigo também, milorde. Eu posso contar-lhes toda a história após voltarmos para a casa, mas se pudermos terminar logo os negócios aqui…

– Tudo bem – disse o rei. – O que eu preciso fazer?

Dal abriu passagem e apontou a cadeira para o seu paciente.

Feodan sentou-se, enquanto Ludon permanecia junto à saída. Por baixo de sua túnica, segurava o cabo de alguma arma. Provavelmente uma adaga ou faca, pensou Feodan.

Estava ansioso. Não sabia o que esperar, e compartilhava das preocupações de Ludon a respeito disso tudo. Mas que alternativa eu tenho?

O garoto, Rotan, aproximou-se do rei com punhado de pétalas azuis em uma mão, e um jarro de água na outra.

– Tilia disse que o gosto da poção é muito ruim, mas você deve ficar bem depois de comer isso. São pétalas de lumizus. São bem doces e gostosas.

Rotan colocou algumas na boca, mastigou, e mostrou os dentes para Feodan. Os dentes dele estavam azuis por causa das pétalas.

Feodan agradeceu.

Dal aproximou-se da mesa e abriu um pesado tomo. Folheou até encontrar o que desejava, bateu palmas e esfregou as mãos.

– Vamos começar – disse ele.

Tilia se aproximou do pai segurando uma jarro de barro pequeno que estava agora com o líquido quente. Dal jogou alguns ingredientes ali dentro e fez uma mistura. Quando se deu por satisfeito, aproximou-se de seu paciente

– Senhor, para que seja possível continuarmos com a poção precisaremos de um pouco de seu sangue.

Ludon imediatamente se assomou às costas de Dal e estava pronto para agarrar o pescoço do sujeito, mas parou a uma ordem de Feodan.

– Eu farei o que tem de ser feito, irmão. O quanto de sangue é necessário? – perguntou voltando-se para Dal que estava claramente atônito pela reação de Ludon.

– Algumas gotas apenas senhor. Podemos apenas furar seu dedo.

– Tudo bem, então. – Voltando a olhar para Ludon disse: – Você precisa relaxar um pouco.

– Desculpe – respondeu o soldado.

Dal deu sequência ao procedimento, e após algumas gotas de sangue terem sido misturadas com a poção, ele a ofereceu à Feodan.

O gosto era amargo e férreo, como Rotan antecipara. Enquanto engolia sentia arrepios por todo seu corpo. A cada vez que engolia, sentia como se tambores explodissem em seus ouvidos. O líquido quente bateu em seu estômago e a dor se fez presente, mas recusou-se a dobrar à ela. A sensação era de que estava tomando uma papa de aveia bem grossa, com o gosto tomando conta de todo o interior de sua boca.

Quando terminou de beber, sentiu o corpo pulsar. Seu coração batia lentamente e com força. Uma onda de calor inundou todo o seu corpo, e se pegou tendo de conter uma forte vontade de urinar. Estava de olhos fechados e quando se deu conta voltou a abri-los. Na mesma hora se arrependeu, pois tudo ao seu redor estava girando. Sentia-se embriagado, tonto, e enjoado.

Ludon ajoelhara-se a sua frente e o segurava com força pelos ombros. Os sons estavam todos misturados. Jurava que conseguia escutar o som do vento na grama do lado de fora, e o som de algum riacho que passava ali perto. O cheiro de madeira fresca, de terra molhada, de grama cortada, explodiu em suas narinas, e se lembrou das pétalas de lumizus. Com grande dificuldade, conseguiu olhar para a sua mão e percebeu que estava fechando o punho com uma força completamente desnecessária. Achou que não conseguiria abri-la, mas percebeu que aquilo era mais fácil do que parecia.

Ludon continuava falando alguma coisa, chamando sua atenção, mas ele só queria que o irmão adotivo calasse a boca. Quando finalmente conseguiu levar a mão com as pétalas de lumizus à boca, o efeito da poção diminuiu.

Sentiu o gosto suave e adocicado das pétalas e as mastigou lentamente. Os sons que antes explodiam em seus ouvidos desapareciam e sua audição voltava para o normal, sendo agora preenchida por várias perguntas de Ludon sobre se ele estava bem, se estava ouvindo, ou o que estava sentindo.

– Acho que estou bêbado – respondeu ele.

Sentia-se divertido. Não sentia mais nenhum efeito ruim da bebida. Seu corpo estava completamente relaxado, e tudo o que mais queria era deitar e dormir. Estava dando risadas, quase gargalhando, e tinha a consciência de que se ele quisesse ele poderia voltar ao controle de si mesmo. Mas para que? Assim é mais… interessante.

– O efeito não demora muito para passar, senhor – disse a garota tocando o ombro de Ludon. Ele ajoelhado ficava um pouco mais alto que ela. – Ele vai ficar bem.


A brisa noturna era refrescante, mas Feodan sentiu um frio congelante quando uma lufada de vento passou por ele. Olhando para baixo, percebeu que metade de sua camisa estava ensopada de suor.

Quando voltou a si, Feodan se viu sendo carregado por Ludon, do lado de fora. Estava com um braço passando pelas costas do companheiro, que estava falando sobre alguma coisa sobre a infância deles.

– … e você nunca levava as coisas que meu pai ensinava a você a sério. Ele ficava furioso, dizendo que o próximo rei seria mais um rei de cadeiras, e não um guerreiro. Se dependesse dele toda a nação seria treinada para a guerra.

– Do que você está falando Ludon? Porque estamos aqui fora?

– Ah, parece que você voltou à consciência. Já estava preocupado.

Ludon tirou o braço que apoiava o rei e se colou à frente dele. Suas mãos seguravam a cabeça do rei e ele encarava seus olhos de perto quando Feodan perguntou:

– Você por acaso vai me beijar?

Ludon bufou.

– Você voltou mesmo a si – disse, fechando os olhos e respirando aliviado. –Vamos, está na hora de mestre Dal dar algumas explicações.

Voltaram ao interior da pequena casa e se sentaram à uma mesa em uma cozinha larga.

– Vejo que já está melhor, milorde. Bem vindo de volta – cumprimentou o fazendeiro.

– Muito bem, mestre Dal – disse Ludon. – Está na hora de responder à algumas perguntas. O que trevas tinha nessa poção?

– Muito bem. Mestre Darmian me informou que essa seria uma de suas exigências, e que eu deveria contar toda a história que eu contei a ele para os senhores. As respostas que vocês procuram estão neste livro. – Fez um gesto para garoto que estava logo atrás de si. Em suas mãos, trazia um trapo, enrolado com um cordão. Feodan não teve dúvidas desde o primeiro momento em que bateu os olhos no trapo de que se tratava de um livro muito bem embrulhado.

– Meus senhores, tenho em minhas mãos um livro sagrado. Não sei quem o escreveu, mas todas as coisas escritas nele são sobre poções. Poções de cura, de fortalecimento, de proteção contra pragas. Sejam para homens, mulheres, animais ou plantas.

A excitação era clara na voz do anfitrião. Seus olhos estavam praticamente pulando de suas órbitas enquanto pulavam de um homem para o outro, a sua frente.

Feodan, apesar de uma súbita hesitação de Dal, tomou o livro em suas mãos. A primeira coisa que notou foi a capa.

– Você sabe o que significam esses símbolos, Dal? A flor de margarida e essa árvore?

– Eu acredito que a maioria dos vallarianos os conheçam, principalmente fazendeiros. São os símbolos das deusas da Terra e da Fertilidade. Livara e Eÿtivelle.

– E o que seriam esses símbolos atrás? – perguntou Ludon, tomando o livro nas mãos e virando-o para mostrar um símbolo no formato de uma gota encimada por um sol.

– Acho que deve ser alguma menção à Ilammá e Balanur, talvez – pontuou Feodan.

– Não, Ilammá é simbolizada pela imagem de um rio – rebateu Dal.

– Não importa. Onde você encontrou isso, Dal?

O fazendeiro olhou para as mãos, e, após um longo momento fitando-as, estendeu a direita para receber o livro. Ludon o entregou sem demoras, e, mais uma vez em suas mãos, Dal carinhosamente alisava a capa, como em transe, ou admiração.

– Na primavera passada – disse de repente, quebrando o silêncio – a minha mulher, que a luz à encontre, faleceu. Com ela por aí já era bastante difícil. Sem a ajuda dela, a nossa pequena fazenda começou a definhar ainda mais. As crianças ainda são muito novas e eu estou velho e desgastado. Não tenho como fazer dois trabalhos ao mesmo tempo. Eu estava pronto para vendê-la, e procurar abrigo em alguma capital do sul. Não me entendam mal, senhores. Aimaran é maravilhosa, mas pessoas como nós encontram trabalho mais fácil nos campos de Érin.

“Um dia, no meio do verão, uma grande ventania atingiu a região. A ventania já era algo fora do comum, ainda mais nessa época do ano. De qualquer forma eu fui olhar a cerca. A fazenda não é grande, mas é uma boa caminhada. Fiz isso no fim da tarde, e no caminho de volta senti um cheiro de carne podre vindo detrás de uma monte de palha. Pela sorte que nós estávamos, pensei que poderia ser algum dos nossos animais morto. E lhe digo, senhores, a primeira impressão que tive foi de que era um animal, mas ele estava vestindo roupas. Eu confesso, estava com medo, mas depois que tirei um monte de palha de cima dele, vi que era um homem. Mas ainda assim, parecia um animal”.

Feodan e Ludon se olharam. Ambos estavam com uma expressão de ceticismo, e como se combinado mentalmente, Ludon tomou a fala.

– Como assim parecia um animal? O que você quer dizer com isso? Que estava maltrapilho, e sujo?

– Não senhor. A pele dele. Parecia a de um macaco da floresta.

– Onde está o corpo? – inquiriu o rei.

– Eu… não sabia o que fazer, senhor. Depois de dois dias pensando, e vendo aquele homem estranho, eu o enterrei.

– Mas antes você pilhou o corpo, não foi mesmo? – Ludon tinha um sorrisinho no rosto. Isso era uma característica de Ludon que surpreendia Feodan. Alí estava seu irmão de criação e melhor amigo. No outro instante estava um soldado, frio e calculista, que certas vezes chegava a parecer ter prazer com violência.

– Sim, senhor – admitiu o anfitrião. – Mas acredito que tenha sido para o bem. Tudo o que ele carregava estava dentro daquela bolsa grande, e além desse livro não havia nada que dissesse de onde ele vinha ou para onde ia. Nem mesmo quem era.

Feodan passou a mão pelo queixo.

A história era muito estranha, e estava de fato muito curioso. Percebeu que desde que voltara para dentro da casa não sentia mais dores fortes. Na verdade, nem mesmo dor sentia, apenas um incômodo em sua barriga, como se estivesse dormente e com gases.

Seus pensamentos foram interrompidos pelo pigarro de Ludon, que parecia ter abandonado sua postura militar.

– Será que poderíamos ver o corpo? E a bolsa também?

– Está escuro senhor, não sei se encontraria o lugar em que o corpo está enterrado.

– E as outras coisas que estavam dentro da bolsa? – perguntou Feodan.

Dal pareceu ficar meio ansioso. Os nós de seus dedos estavam brancos devido à força que fazia para segurar o livro.

– Eram apenas ingredientes, senhor – respondeu. Era possível ver uma fina camada de suor sobre suas sobrancelhas. Isso não escapou aos olhos do Ludon.

– Porque de repente você ficou tão assustado, mestre Dal? Só queremos saber. Ou talvez você prefira uma visita de mestre Darmian.

– Não, senhor – disse com pressa. – Não será necessário. – Parece que “mestre Darmian” foi bem persuasivo, pensou Feodan. – Além daquele líquido preto com cheiro de ferro, havia também um pó branco, que nos livros ele chama de “pó de fertilidade”. Quando eu o usei nas minhas plantações… bem, vocês devem ter visto, ou pelo menos sentido o cheiro. Tudo pareceu crescer forte, mesmo durante o inverno. Nossas mangueiras estavam quase mortas, mas hoje temos vendido mais manga do que nunca. Havia uma ração especial para fortalecer cavalos, mas que aparentemente serviu para minhas duas vacas. E outro monte de ervas que eu nunca vi que foram usados para a cura de Tilia, e do senhor. Além de alguns temperos que deixam a comida com um gosto amargo.

O homem parou de falar e passou a encarar os dois visitantes sentados a sua frente. Voltou a falar com um tremor na voz.

– Por acaso, eu não cometi nenhum crime, não é? Eu não machuquei ninguém. Nem roubei nada que… quer dizer. Ele já estava morto, e nós estávamos precisando muito disso.

– Acalme-se, mestre Dal – disse Feodan, levantando-se. – Ninguém aqui lhe fará mal. Estamos apenas curiosos. Não há razão para ficar preocupado.

O fazendeiro pareceu soltar um pouco do ar que prendia ansiosamente, porém voltou a prender a respiração após o que Feodan falou.

– Amanhã, no entanto, o meu amigo aqui virá durante o dia para ver com você se encontra o corpo. Ele trará alguns ajudantes, claro. Você só terá que guiar. Não vamos entrar em detalhes sobre onde ele foi encontrado, mas acredito que alguns amigos nossos da Universidade poderão ajudar a descobrir alguma coisa sobre esse “homem macaco”.


No caminho de volta para a cidadela o diálogo dentro da pequena carruagem foi intenso. Ludon e Feodan discutiam e criavam suas próprias teorias sobre tudo aquilo que viram e presenciaram durante a noite. Feodan já sentia melhoras após algumas poucas horas. O alívio era comparável a um balde de água fria jogado em brasas.

A voz de trovão de Ludon retumbava lá dentro.

– Tem que ser alguma forma de receita inédita de cura com ervas. Você viu o que ele falou sobre elas. Ervas que ele nunca havia visto antes. Com certeza era algum curandeiro ou estudante de outras terras.

– Um estudante de outras terras, que parece um macaco, a alguns quilômetros do coração de Vallarys? – Feodan rebateu. – Não Ludon, há alguma coisa estranha nessa conversa. Por exemplo, por que ele precisou usar meu sangue? Parta amanhã à primeira luz do sol com homens de confiança para desenterrar aquele corpo. Não perca seu tempo examinando-o, simplesmente traga-o o mais rápido possível para a Universidade. E ainda assim, não façam nada sem que eu esteja presente.

– Ora, Feodan, o que você espera encontrar? Mais referências aos deuses antigos? Magia? Já parou para pensar que pode ser apenas o corpo de um eremita pagão peludo que deu azar de morrer na fazenda daquele pobre coitado?

– O fazendeiro…

Ludon encarou o irmão de consideração à meia luz dos lampiões que invadiam a carroça. Feodan estava com o cenho franzido, e pensativo.

– O que há com o fazendeiro, Feodan?

– Precisamos garantir que ele não espalhe a notícia.

– Ele não faria isso. Ele deu a palavra, assim como nós. E a simples menção dos deuses antigos é o suficiente para que despertar o nada desejado interesse do exército da luz, com seus inquisidores sanguinários.

– Pode até ser, mas não duvido que ele reagirá, afinal de contas estaremos confiscando tudo aquilo que deu um novo sentido à sua vida. Sei que isso não estava nos planos, mas é o que eu quero. É o que Vallarys precisa. Ele com certeza reagirá. Além disso ele representa um risco enorme. É como uma ponta solta em um casaco de lã. A partir de lá, qualquer notícia poderia surgir sobre minha doença. Não podemos ter uma preocupação dessas, não sabemos até que ponto ela durará.

Ludon observava o seu irmão de criação, seu amigo… Não, esse era o seu rei falando. Feodan Aimar, de uma família política e estrategista, um homem que não corria riscos.

Dando um suspiro alto, Ludon disse:

– Basta dar a ordem, meu rei.

Feodan olhava para o nada enquanto falava.

– Mate-o, e aos filhos também. Falarei com Lubran para espalhar a história de que ele trabalhava com os hurrgals. Leve um hurrgal presidiário até lá, faça uma simulação caso surjam olhos curiosos. Já lutamos uma guerra diariamente, não precisamos de facas às nossas costas. Os olhos devem estar voltados para a floresta e para os picos de Féluro. Para os verdadeiros inimigos: os hurrgals.

– Farei como ordena o meu rei.