01
O homem que andava pela estrada velha olhou para trás curioso. Vários passos atrás vinha a silhueta de uma carroça puxada por um boi. Por trás dela, o sol se escondia nas nuvens que começavam a ficar mais pesadas no fim da tarde. Voltou a olhar para frente e seguiu andando no mesmo ritmo sabendo que logo seria alcançado.
O lugar a sua volta era ermo e triste.
O mato crescia em meio a lama. Resquícios das chuvas de primavera. Havia algumas rochas ao lado da estrada, perfeitas para esconder um ou dois bandoleiros. Não havia árvores por perto e ao longe se podia ouvir o som de um riacho.
O som rangente da carroça e dos cascos do boi que a carregava aumentava enquanto o sol se punha, mas essa presença não preocupava o homem que andava a pé. Logo a carroça passará por mim e seguirá seu caminho, pensou e pontuando o fim de seu pensamento, soou o primeiro trovão, longe, mas se aproximando com as nuvens vindas do leste.
– Vai cair uma tempestade essa noite – disse o homem da carroça, alto o suficiente para ser ouvido. Era velho, vestia uma roupa de camponês feita de linho, calças de pano fino e um chapéu velho e pontudo que cobria parcialmente seus olhos.
O andarilho olhou na direção da voz e, ao cruzar o olhar com o velho, assentiu. A carroça diminuiu um pouco a velocidade para igualar à do andarilho.
– Pra onde você está indo, andarilho? – perguntou o velho. – Talvez eu possa lhe dar uma carona, em troca de algumas moedas, claro.
– É muito gentil senhor, mas não tenho dinheiro – respondeu sem olhar para o outro.
O velho ficou em silêncio por algum tempo e esporeou o seu boi a andar mais rápido. Quando pensou que havia se livrado do velho, o andarilho o viu parar a carroça e olhar para trás. Ficou ali, esperando, enquanto ele se aproximava da carroça. As primeiras gotas de chuva começavam a cair.
– Desculpe incomoda-lo de novo, filho – disse olhando para o céu com cara de desdém – Gostaria de dividir uma fogueira, ao menos?
O andarilho observou o céu uma última vez. O sol já estava oculto no horizonte às suas costas e a escuridão caia com a chuva à sua frente.
– Não tenho madeira ou pederneiras, velho. Sou inútil para você, sinto muito – Seu rosto, compatível a um homem de quarenta anos, não demonstrava emoção. Falava sinceramente.
– Pois eu tenho uma tenda velha, madeira, pederneiras, e alguma comida. – Agora o velho gritava tentando sobrepor o som do vento forte que vinha seguido pela chuva. – A única coisa que peço em troca é alguma companhia. As estradas do império não são mais as mesmas. O que me diz?
Olhando mais uma vez para o rosto do velho, o andarilho demonstrou pela primeira vez algum sinal de humanidade.
– Porque você acha que deveria confiar em mim? Sou apenas mais um maltrapilho nesta estrada esquecida, mas poderia muito bem ser um bandoleiro.
– Se você tentar qualquer coisa eu posso oferecer uma briga e tanto.
O andarilho avaliou novamente o velho. Ele com certeza foi um homem endurecido pela vida do campo, mas duvidava de que fosse capaz de oferecer um desafio para si.
Um segundo trovão soou mais próximo, e por um curto tempo o andarilho reavaliou suas condições.
Tudo bem. Mais alguns quilômetros para o leste chegaremos a uma cidade chamada Stedsvail. Ficarei por lá. Lhe acompanho até lá, depois disso estará por conta própria, velho.
– Você me chama de velho, mas também já viu dias melhores – disse rindo enquanto o andarilho subia na carroça.
Mais alguns dias e finalmente sairei deste buraco. Foram anos difíceis, mas finalmente poderei voltar para Illien e completar minha prova de admissão, pensava Moldred com extrema felicidade ao acordar com os primeiros raios de sol que invadiam a janela de seu quartinho, nos fundos da casallach da pequena cidade de Stedsvail. Levantou-se de sua cama e ao abrir a janela respirou fundo o ar úmido da manhã. A chuva da noite passada deixara várias poças d’água que refletiam os raios de sol em seu rosto. Fechando os olhos, fez uma breve oração ao deus da luz.
Assim que terminou, lavou o rosto na água limpa que ficava numa bacia em cima de uma estante, jogou pela janela a água suja que ficava em outra bacia embaixo da cama, vestiu seu manto branco – já não tão branco como gostaria – e seguiu o cheiro de ovos que vinha da cozinha.
Uma manhã realmente perfeita, depois de uma noite tremendamente escura e fria, pensava ele enquanto seguia o cheiro do que seria seu desjejum.
– Bom dia An! – disse para a mulher que fritava os ovos na cozinha. – O cheiro destes ovos está ótimo!
– Bom dia, mestre Moldred – disse baixando a cabeça em sinal de respeito. Já era uma mulher de idade avançada, alguns anos mais velha que o próprio Mold.
– Baita chuva que tivemos essa noite não? – disse ele enquanto puxava uma cadeira e se sentava.
– Sim. Estive no meio dela durante a noite. Fiquei ensopada dos pés à cabeça enquanto… Cuidava de alguns assuntos.
A sim, alguns assuntos. Aposto meu braço direito que estava fornicando com algum fazendeiro durante a noite. Pensou ele enquanto sorria para os ovos fritos em banha de porco. Essa cidade mais parece um grande celeiro, cheio de animais no cio. Acho que essa seja a maior fraqueza dos homens e nada nunca mudará isso. Mas tudo o que os sábios de Illien sabem sobre esse fim de mundo vem das minhas mensagens e duvido que eles percam seu tempo vindo até aqui para conferir e julgar meu trabalho. Só mais onze dias, Mold, e você poderá sair desse lugar.
Sorria enquanto pensava na cidade em que nascera.
Illien, a capital do Império Teorano. O lugar mais rico e civilizado por onde já passara. As palavras de fofoca que saiam da boca de An se misturavam ao canto dos pássaros que piavam em uma árvore, às galinhas que cacarejavam no galinheiro próximo à cozinha, de um cavalo que relinchava no estábulo, da batida forte que vinha da porta da frente da…
– Já vai! – gritou An tirando Mold de seu devaneio.
– Está esperando alguém, An? – perguntou. Aposto que deve ser um de seus assuntos da noite passada.
– Não, mestre. – respondeu educadamente, ou pelo menos o mais educado possível para uma pessoa do nível dela. Tenho que pensar melhor os meus atos. Dois anos em Stedsvail pode mudar a sua forma de agir. Se um serviçal sair em disparada dessa forma, sem a concessão de seu superior, com certeza terminaria em uma correção de conduta na capital. Por Mitikr, será que minha forma de falar também mudou?
– Senhor? – disse An ao voltar para cozinha. – Há um homem que deseja falar com você.
– Comigo? – levantou-se já enxugando a boca no colarinho de seu manto. – Quem é?
– Não sei senhor. Nunca o vi por aqui antes. Disse que está viajando há muito tempo e gostaria de arrumar alguma orientação.
– Tudo bem An, pode deixar que eu resolvo isso. – Sorriu ao passar pela governanta.
Quanto desrespeito! Bater à porta do mestre de luz, incomodando-o durante o seu desjejum! Onze dias, Mold, onze dias!
An deixara a porta entreaberta. Só podia ver a sombra das pernas do visitante por debaixo da porta. Pelo menos não se atreveu a entrar sem ser convidado. Esperava algum mendigo, sujo de lama deixada pela chuva da noite passada, ou até mesmo ensopado e tremendo dos pés à cabeça. Estaria com uma mão atrás das costas e a outra atirada à frente em concha. Devia ter uma barba mal cuidada e dentes podres. Sem falar no cheiro. Mendigos sempre cheiram a cerveja e mijo.
Quando abriu a porta perdeu o fôlego por um instante. Não era um mendigo que estava a sua porta. Nada do que pensara se encaixava no homem, a não ser a lama nas botas de cano alto e na barra de sua capa. Usava um lenço roxeado desgastado no pescoço. Seu capuz estava jogado para trás. Em sua cintura, do lado direito, havia uma adaga presa ao cinto e usava um pedaço de pau como um cajado.
Mas isso tudo só foi notado por Mold mais tarde, quando tomou tempo para pôr as ideias em ordem. O que o deixara sem fôlego foram os olhos azuis do homem, que pareciam ter um brilho congelante, e a cor de suas roupas: tudo o que o homem vestia, com exceção do lenço roxo, era preto como ébano.
– Bom dia, mestre – disse o homem de preto antes de baixar a cabeça como forma de comprimento.
– Bom dia, claro! – disse Mold engolindo um seco.
– Desculpe incomoda-lo tão cedo, mas estou apenas de passagem por Stedsvail. No entanto, não tenho moradia ou dinheiro. Gostaria de saber se há algum trabalho temporário que possa realizar pelas redondezas, e me hospedar em algum lugar. Não peço a caridade de ninguém, apenas um lugar para que eu possa descansar. Não pretendo fincar raízes por aqui.
– Claro, é para isso que estou aqui. Será que podemos nos encontrar em instantes no templo da casallach, estou terminando o meu desjejum.
– Podemos falar na varanda?
– Tudo bem, na varanda então. Não demorarei muito. Até breve. – Fechou a porta rapidamente e correu em passos leves de volta para a cozinha. – An! – chamou gritando com um sussurro – An, preciso de uma faca afiada!
– Para que? – perguntou ela com olhos esbugalhados e assustados.
Para que, MESTRE! pensou com raiva.
– Apenas me arranje uma faca afiada, não pretendo usa-la, mas seria melhor tê-la por perto. – Na verdade estava morrendo de medo. Um homem vestido totalmente de preto como o próprio Beludge. Por favor, Mitikr, Só me faltam onze dias para sair desse lugar. Por favor jogue sua luz em mim!
Guardou a faca na manga de seu manto e testou uma forma de saca-la rapidamente. Apesar de serem gestos sem jeito, se deu por satisfeito e seguiu ao encontro.
O prédio todo era muito simples.
Ao entrar você daria de cara com uma sala mobiliada com uma mesa redonda com quatro cadeiras, uma lareira e um cabideiro atrás da porta. Um pequeno corredor que poderia ser atravessado com seis ou sete passos largos levava para dois quartos, o do mestre de luz e um de hóspedes, ocupado no momento por An. A entrada para a cozinha ficava no meio do corredor e sua outra saída levava para uma área livre do terreno, onde ficavam o celeiro, estábulo e galinheiro. Uma porta na sala levava para o templo da casallach. A varanda corria lateral ao corredor, do lado de fora.
Assim que terminou o desjejum, Mold saiu pela porta da frente da casa e encontrou o visitante indesejado sentado num banco à sobra da varanda. Sentando-se ao seu lado, e concentrando-se na faca para que ela permanecesse oculta, Mold quebrou o silêncio:
– Pois então, como posso ajuda-lo, senhor…
– Imer – respondeu o visitante.
– Como?
– Meu nome é Imer. Pode me chamar assim.
– Muito bem, então. Como posso ajuda-lo, senhor Imer?
– Como já disse, mestre, não pretendo passar muito tempo. Apenas realizar algum trabalho e seguir o meu rumo.
– E qual o seu rumo, se não for perguntar demais?
Imer pensou por um tempo e parecendo chegar a uma conclusão, respondeu.
– Para ser sincero, estou sem rumo, mestre. Procuro um caminho ou algo para fazer há algum tempo e o próprio acaso me trouxe a este lugar.
A este buraco, pensou Mold.
– Então você é um andarilho? Pelas suas roupas posso ver que possui, ou já possuiu alguma riqueza, certo?
– Sim, sou um andarilho e o que carrego comigo é tudo o que eu tenho. E tudo o que tenho obtive com algum tipo de trabalho – Dito isso passou os dedos da mão direita sobre o lenço roxo em seu pescoço, afagando-o de modo terno e com o olhar distante. Certamente este lenço tem algum valor pessoal, posso ver. – Mas o que fiz está no passado e não importa. O que preciso é de descanso, e não aceitarei caridade de ninguém. Para isso preciso de um trabalho. Essa é a minha penitência. Você pode me ajudar com isso ou não?
Olhou sério para Mold, que sentiu mais uma vez a força que existia em seus olhos. Vá com calma, não arrume problemas. Onze dias!
– Claro, acredito que sim. – disse sorrindo. – Talvez um trabalho em alguma fazenda próxima? Sabe cuidar de animais, arar o campo? A primavera já está sobre nós, há muito trabalho de campo para fazer.
– Pode servir.
– Bom, bom. – Mande-o para a fazenda mais longe. “Tudo o que tenho obtive com algum tipo de trabalho”. Isso parece coisa de mercenário, a sim parece. Não quero nenhum assassino por perto. – Vou te mandar para trabalhar com Liono. Ele tem uma fazenda de trigo. Basta seguir a estrada para o sul e entregar uma carta que vou preparar. Garanto que terá trabalho por lá por muito tempo. Se você voltar para Stedsvail não acho que me encontrará. Partirei para a capital dentro de alguns dias, por isso não estarei aqui para te ajudar.
Bem longe daqui.
– Talvez, quem sabe. Poderia me dizer o que há de novo em Teora?
– Ora, não quero ser rude, mas se você procura notícias sobre o Império deveria ter procurado uma cidade maior. Nada que acontece em Stedsvail aparenta ser relevante.
– Mas você é um Mestre da Luz. Sei que vocês são muito bem informados sobre o que acontece no império.
– Claro. Mas a maior parte das questões é burocrática e não diz respeito a forasteiros, sem querer ofender.
– Não me ofende. – O forasteiro passou a encarar as mãos calejadas enquanto pensava na próxima coisa a falar. Mold percebia no homem alguns detalhes que não percebera antes: poucos cabelos grisalhos, algumas cicatrizes pequenas nos punhos, algumas rugas trazidas pela idade e novamente os olhos. Aqueles olhos azuis pareciam brilhar sob a sombra da varanda. Imaginou que se brasas fossem azuis teriam o mesmo brilho. Mold estava tão submerso na profundeza daqueles dois lagos minúsculos de cores tão puras que não entendeu o que o homem dissera em seguida.
– Desculpe, eu me distraí – disse ele. – Poderia repetir a última coisa que falou?
– Sim: encontrei algumas pessoas na estrada que me trouxe para cá e todos diziam que as estradas se tornaram perigosas, que o Império já não possui aquela antiga segurança em suas estradas. Será que aceitariam um homem de fora para vigiar essas estradas?
Acertei na mosca, pensou Mold. Claro! A maneira como se veste, como se porta, como fala. Esse homem já foi um soldado ou talvez seja um mercenário que perdeu tudo.
– Essas são questões que estão fora do meu controle, senhor Imer. Em pouco tempo estarei de volta à capital, como já falei. De fato o Império está abalado, mas é questão de tempo. Confio no meu imperador e na Voz de Mitikr para resolver esses problemas. Mas se você procura por algum tipo de trabalho em que possa usar a espada ou um uniforme, talvez devesse seguir a estrada ao sul e ir direto para Vallarys. Eles vivem em pé de guerra com os seus hurrgals. O que me diz, ainda preciso escrever a carta para Liono?
O andarilho abaixou a cabeça de forma pensativa e após um incomodo silêncio do qual Moldred não sabia como escapar, ele levantou-se dando sua resposta.
– Por favor, escreva essa carta para Liono. Não tenho certeza sobre o que quero no momento, mas acho que a viagem a pé em direção à fazenda possa me ajudar a resolver essa questão. Agradeço por sua ajuda, mestre. Há apenas um último pedido que gostaria de fazer, sem querer abusar de sua hospitalidade.
– Se estiver ao meu alcance, não hesitarei – disse Mold com um sorriso largo demais no rosto. Por algum motivo que não conseguia entender, ficou aliviado com a possibilidade do homem partir o mais breve possível, e estava disposto a ajuda-lo a ir embora.
– Será que poderia me arrumar alguma comida para minha viagem?
Ah! A mendicância! Não poderia faltar a mendicância.
– Isso não é problema algum! – respondeu o mestre de luz. Vou escrever a carta e selá-la para que você entregue a Liono, e enquanto faço isso vou pedir para que minha governanta separe alguns suprimentos para você.
– Muito obrigado, mestre.
Claro, claro. Não há problema algum.
Moldred entrou na casallach, deu as ordens para An e só quando chegou ao seu quarto para escrever a carta prometida é que percebeu com quanta força segurava a faca de cozinha sob a manga de seu manto, a ponto de deixar a mão esquerda dolorida.
Onze dias Mold. Onze dias.